LABORATÓRIO DE PERFORMANCE:
UMA PROPOSTA ALTERNATIVA PARA O DESENVOLVIMENTO DO FAZER MUSICAL
Salete Chiamulera*
RESUMO: Este trabalho pretende relatar, em linhas gerais, uma prática de desenvolvimento da performance, priorizando-se o compartilhar do fazer musical, com intérpretes de diferentes estágios e níveis de maturidade na reconstrução artística, apoiando-se na linguagem coloquial para a troca de impressões e de experiências.
INTRODUÇÃO
A performance musical é um momento sublime de paixão, emoção e doação. Paixão pela entrega de si mesmo em forma de sons; emoção porque esta entrega se transforma em comunicação e doação porque nesta entrega se efetiva o verdadeiro amor. A performance, neste estado sublime, encerra uma palavra-guia, uma palavra-chave: o envolvimento. Esta palavra, estado de ser, é evidenciada em vários aspectos: fisiológico, comportamental, psicológico, cognitivo e emotivo.
O aspecto fisiológico denota-se pelo estado de alteração de batimentos que uma situação de exposição acarreta – o stress de palco. Este aspecto provoca conseqüências psicológicas e comportamentais, evidenciando-se mais, quanto maior for o envolvimento ou o não envolvimento do intérprete com o momento. O aspecto cognitivo da performance é o conhecimento e a consciência racional de tudo o que acontece na obra – o seu aspecto construtivo da sua coerência formal e lingüística que orientam e dão consistência a este momento. A riqueza da performance depende diretamente do grau de intensidade do como o intérprete domina e é dominado por este envolvimento em todos os aspectos e conseqüências.
Este momento sublime (que parece mais autêntico, real e verdadeiro quando acontece na performance ao vivo) delineia-se em duas fases bem distintas: a preparação da performance e a vivência do momento em si. O contexto do Laboratório de Performance é uma etapa intermediária entre estas duas fases.
Esta preparação da performance se estabelece em três aspectos:
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a escolha do repertório;
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a definição e a construção da técnica;
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a preparação propriamente dita – o estudo solitário, acompanhado e/ou orientado, no qual a técnica é consolidada.
A preparação da performance já se inicia na escolha do repertório: a escolha das obras que farão parte do eu do intérprete e serão um instrumento do momento sublime que é o compartilhar. Da decisão do repertório dependem amplamente a qualidade e o êxito da execução. Na literatura musical há uma infinidade de obras. É essencial escolher para trabalhar e interpretar, aquelas com as quais o intérprete realmente se identifique para favorecer e facilitar o envolvimento citado.
A técnica é o caminho escolhido para a execução, a construção física e emocional da atividade musical. Todo o instrumentista é um artesão e, como tal, deve dominar a partir de suas mãos e do seu corpo, a mecânica do fazer musical. A consciência das facilidades e dificuldades do instrumentista o faz proceder escolhas de obras adequadas à sua capacidade técnica, possibilitando a verdadeira adequação mecânica do intérprete à obra.
O Laboratório de Performance também se mostra valioso no conhecimento e na escolha de repertório, porque o intérprete já é convidado para executar certas obras que são relevantes para o seu desenvolvimento musical. É importante ressaltar que se deve escolher obras que estejam um pouco abaixo da capacidade mecânica do instrumentista para o trabalho coletivo. Assim, tem-se a chance de vivenciar a delícia do tocar com muita facilidade e fluência. Obras difíceis e mais complicadas são importantes para o desenvolvimento do músico, mas no momento da performance pública, obras mais fáceis, que realmente sejam dominadas pelo intérprete, devem ser as escolhidas, enfatizando o reforço positivo. Cada performance ao vivo deve ser um elo cada vez mais forte na memória do intérprete, criando um ciclo virtuoso em seu desenvolvimento.
Evitar experiências traumáticas no palco, uma das funções do Laboratório de Performance, é muito importante, porque estas experiências negativas podem vir a comprometer todo o desenvolvimento do aluno e, em casos extremos, acarretar o abandono do estudo.
A preparação propriamente dita é um processo solitário e íntimo de horas dedicadas ao estudo do instrumento. O Laboratório de Performance insere-se na linha de preparação compartilhada discutida e desenvolvida em um processo público dinâmico e sinérgico.
O LABORATÓRIO DE PERFORMANCE: UMA OUTRA ABORDAGEM DA PERFORMANCE
A abordagem prioriza a espontaneidade e a força individual em especial de cada intérprete. O próprio nome dado à atividade, Laboratório, refere-se muito mais a processos químicos, à química da interpretação, sua emoção, reações e alterações na vivência pública interdependente dos intérpretes e artistas mais experientes. Este jogo de interpretação, performances e discussões facilita o aprendizado à medida que estabelece maiores conexões com o conhecer e o vivenciar.
Bernard Charlot, em seu livro, “Da relação do saber” bem define a imprescindível necessidade do fomento de relações diversas para uma aprendizagem com maior fluência. A seguir, um fragmento deste texto, nos mostra a verdade do saber com relações de saber.
“É em termos de relações que, efetivamente, se deve pensar, dado que o que está em jogo é um ser vivo e, mais ainda, um sujeito. Um ser vivo não está situado em um ambiente: o está em relação com um meio. Está biologicamente aberto para este meio, orientado para ele, dele se alimenta, o assimila, de maneira que o que era elemento do meio se torna recurso do ser vivo. Inversamente, o meio não é uma soma de dados físico-químicos, mas, sim, um conjunto de significados vitais. Conforme escreve Canguilhem “um ser vivo não ser reduz a uma encruzilhada de influências.” [...] “Se o ser vivo não procurar, nada receberá.” [...] “Entre o ser vivo e o meio, a relação se estabelece como debate”. Para o homem, este meio é um mundo, que ele partilha com outros.
A relação com o saber é uma relação de um sujeito com o mundo, com ele mesmo e com os outros. É relação com o mundo como conjunto de significados, mas, também, como espaço de atividades, e se inscreve no tempo. Precisemos estes três pontos.
O mundo é dado ao homem somente por intermédio do que ele percebe, imagina, pensa dele; do que ele deseja, do que sente: o mundo se oferece a ele como conjunto de significados, partilhados com outros homens. O homem só tem um mundo porque tem acesso ao universo dos significados, ao “simbólico”; e neste universo simbólico é que se estabelecem as relações entre o sujeito e os outros, entre o sujeito e ele mesmo. Assim, a relação com o saber, forma de relação com o mundo, é uma relação com sistemas simbólicos notadamente, com a linguagem.”
PRÁTICAS TRADICIONAIS DO DESENVOLVIMENTO
A preparação de um instrumentista e das obras para solistas normalmente se processa no trabalho individual, ainda que submetido à orientação de um professor ou de um artista mais experiente. Para amenizar esse individualismo da aprendizagem de uma obra de arte instrumental solista, escolas e professores de música oferecem duas tradicionais situações para o desenvolvimento da performance em público: as aulas coletivas e as master classes.
Aulas coletivas acontecem quando um determinado professor de instrumento reúne seus alunos com uma certa periodicidade para troca de experiências e para os alunos “experimentarem” a performance da obra em frente de outras pessoas, colegas entre si.
Na situação de master class, um artista experiente escuta a interpretação da obra e trabalha em público, isto é, é uma aula de instrumento e interpretação ao vivo e pública, com uma platéia de ouvintes que não opinam ou discutem a interpretação.
Cada uma destas práticas traz muitos benefícios e algumas restrições. Na aula coletiva, a platéia é menor e os intérpretes desfrutam de uma certa familiaridade por se tratar de colegas de uma mesma classe. Este conhecimento prévio da platéia oferece uma certa tranqüilidade ao artista, amenizando desta forma o stress de palco. Na master class, a aula com o “mestre” já não é revestida desta zona de conforto quanto à platéia, mas ainda se trata de uma aula – o artista está em uma situação cômoda pois está na posição de aluno.
Estas práticas tradicionais até hoje são comuns e colaboram para o desenvolvimento do artista, porém, são caracterizadas por um aparente trabalho em equipe.
A ESTRUTURA DO LABORATÓRIO
O Laboratório de Performance é uma proposta nova que congrega os benefícios das tradicionais práticas públicas de performance musical: a experiência de artistas mais vividos em master classes e a troca entre alunos de diferentes estágios de desenvolvimento com a tranqüilidade da aula coletiva em relação à platéia.
O Laboratório de Performance é estruturado a partir da execução de uma ou mais obras com intérpretes diferentes, artistas e professores convidados, debatendo e discutindo estas interpretações. Um mediador é convidado para a condução dos trabalhos e o fomento da discussão, enquanto controla o tempo pré-determinado para as obras em questão. Cada intérprete é convidado a justificar oralmente sua interpretação, abordando aspectos que achar relevantes. A platéia também deve ser motivada a participar dos debates.
A essência do Laboratório é a troca, a comunicação, a descoberta sempre individual e única para cada indivíduo, mas deflagrada a partir de uma situação coletiva: um recital comentado coletivo, com interpretações diversas (com mais ou menos consistência). Como as séries de quadros de Monet – um único objeto, mas com diferentes possibilidades de espectros de luz – a luz própria de cada intérprete. A luminosidade de cada performance enriquecendo a arte de cada intérprete
O Laboratório de Performance é o laborar da arte musical em conjunto – desfrutar da prática interpretativa no confronto com outras cargas e tendências culturais e emocionais. Um alternar do fazer musical e do falar. Uma das grandes preocupações deste laborar a música de forma coletiva é diminuir sensivelmente a distância entre o músico, seu desenvolvimento artístico e suas habilidades comunicativas e sociais. No confronto de uma obra com suas inúmeras visões e possibilidades interpretativas, a obra de arte propriamente dita engrandece e é enriquecida. O desenvolvimento de uma habilidade manual, que é a essência do domínio de seu instrumento – uma atividade solitária e individualista – é transposta para um verdadeiro trabalho de equipe (e, não apenas, de uma “equipe” de dois – o aluno e o seu mestre). Em uma era da comunicação, a troca efetiva de experiências, o desmistificar do pedestal do músico do século XIX –infalível e místico – se concretiza em uma verdade diária de trabalho compartilhado com humildade e de maneira interativa.
A música é uma experiência metafísica, mas seu processo de construção e vivência passa por todo um trabalho real e consciente do fazer musical – por que não usar o processo neurolingüístico para a eficiência deste desenvolvimento e a discussão coletiva como base para o laborar individual da performance? Vivencia-se, assim, a arte em suas múltiplas “mãos” – as inúmeras facetas do coletivo, enriquecendo o conteúdo de uma obra.
Segundo Heinrich Neuhas, em A Arte do Piano,
Quando se sabe o que se tem que fazer, a maneira de fazê-lo é mais clara. O objetivo exige o meio para alcançá-lo. É a palavra do enigma que estabelece a técnica dos grandes intérpretes que aplicam a fórmula de Michelangelo: (a mão se submete ao espírito). Por isto, insisto para que a essência da música preceda ou ao menos acompanhe à da técnica. A técnica não pode existir sobre o nada, assim como não se pode criar uma forma vazia de conteúdo.
Já Magdalena Tagliaferro, em Quase Tudo, afirma:
Sabemos que Chopin escreveu: “nada é mais detestável que a música sem segundas intenções.” Uma sentença de que devemos se tributários! Com efeito, não basta analisar e compreender um texto. Para transmiti-lo e atingir a sensibilidade do ouvinte é preciso , além disso, viver esse texto, ser tocado pela graça dessas segundas intenções que são, justamente, o que reflete o íntimo de um autor, e que ele não saberia definir por grafismos ou palavras.
Mas, então, que direito temos nós de procurar este debate dialético coletivo da “linguagem musical”? Por razões didáticas! A ciência também se faz em uma linguagem complexa. A matemática também é uma linguagem. Como se aprende matemática, física, filosofia e a própria música? Através da nossa linguagem coloquial – simples e automática!
No laborar a prática da performance em grupo, procura-se o enriquecimento da vivência artística – um debate amplo sobre as primeiras, segundas e quantas forem as intenções e possibilidades do fazer musical. Este processo coletivo é que propomos como mais um caminho de intercâmbio da prática instrumental individual ou restrita (no caso – a música de câmara). Procuramos a criação de um contexto mais amplo de troca de experiências e de renovação da prática instrumental, a partir de uma sinergia mais profunda e presente.
A arte não se aprende, se desenvolve. Uma técnica pode ser aprendida, mas sempre será um recurso para o desenvolvimento do artista e de sua arte. Nesse caminho, o laboratório é um espaço coletivo para cada um desenvolver sua arte individual e especial a partir da sua própria capacidade e maturidade e apreender novas referências da obra de arte em questão, referenciando-se em interações saudáveis. Assim, o Laboratório organizado a partir de uma única obra pode oferecer a possibilidade de um debate mais profundo. É de igual importância a comunicação coloquial do próprio artista como uma ponte para tudo aquilo que a sua própria interpretação musical desperta nos ouvintes e aquilo que o intérprete vivência. Um descobrir coletivo da obra e de si mesmo.
A primeira experiência de trabalho em dinâmica de Laboratório de Performance ocorreu no I Festival Penalva, na Escola de Músicas e Belas Artes do Paraná, nos dias 21 a 23 de outubro de 2003, no período das 13h30 às 17h30. Foram organizados seis grupos de trabalho, expostos a seguir:
GRUPO I - Obras para piano
Mediador: Luci Collin Convidados: Maria Leonor Mello de Macedo, Maurício Dottori
Liziane Moreira, Salete Chiamulera, Alexsander de Lara*
Vanessa Gubert, Paola Néspolo, Davi Bronguel
Giane Costa, Valeria Rosseto Nunes
Salete Chiamulera, Dayse Urias
Daniel Binotto, Henriqueta Garcez Duarte
GRUPO II - Canto e piano
Mediador: Pedro Gória Convidados: Bruno Spadoni, Neyde Thomas, Roseli Schünemann
Paulo Igmatowicz; Luciane Kiefer; Marise Farias, Karina Campos
Marco Roberto dos Santos
Marinice Lenz, Marcele Cotosky
Tatiana Figueiredo
Marinice Lenz, Elizabeth Kozak
Katia Santos
Silmara Campos
Grupo de alunos de canto e de música de câmara de Roseli Schünemann
Pianistas acompanhadores: Carlos Assis e Valéria Rosseto
GRUPO III - Explorações estéticas
Mediador: Elisabeth Seraphim Prosser
Intérpretes: Leilah Paiva e Franco Bueno; Daniel Binotto, Salete Chiamulera
Carlos Assis, Sérgio T. André, Valéria Rosseto Nunes, Alexsander de Lara
Renata Bittencourt, Henriqueta Garcez Duarte, Sérgio Justen
GRUPO IV – Sonatas para Piano
Mediador: Daniel Binotto
Convidados: Harry Crowl, Maria Leonor M. de Macedo, Osvaldo Colarusso
Salete Chiamulera
Henriqueta Garcez Duarte, Carlos Assis
Olga Kiun
GRUPO V - Obras para piano e transcrições para música de câmara
Mediador: Daniela Tsi Gerber
Convidados: Denise Sílvia Borusch, Maria Antonieta Wolf de Carvalho
Bruna Marinho, Thiago do Amaral, Isabel Sanchez, Davi Bronguel
Michele Priscila Mohr, Larissa Baldassarre Lourenço
Trio Lelê: Paula Böhler, violino; Matheus Böhler, violoncelo; Isadora Chiamulera, piano
Trio: Karina Santos, violino; Cassiano Carteli, violoncelo; Estéfani do Amaral, piano
Flautas doces: Annele Pauls, Giovani Dallagrane, Gustavo Carvalho, Patrycia Coelho, Tatiane Wiese
Valentina Chiamulera, Salete Chiamulera, Suzana Sonza; Agnes Leimann Illescas e
Denise Borusch; Agnes de Sousa e Jefferson Mello
GRUPO VI - Mini-suites para piano
Mediador: Carlos Alberto Assis
Convidados: Henriqueta Garcez Duarte, Olga Kiun
André Antunes Fadel, Gustavo Schafascher, Mayara Furlanetto, Priscila Battini
Violões : Orlando Fraga e Alisson Alípio
Ana Maria Lacombe Feijó, Jacson Araújo, Sergio Inácio Torres
Alexandre Gonçalves, Paola Néspolo, Renata Bittencourt
COSIDERAÇÔES FINAIS
Os resultados destes trabalhos foram positivos e de grande valia para o desenvolvimento da prática da performance e corroboraram as propostas dos Laboratórios. A partir daí, foram realizadas outras experiências com essa mesma forma de laborar musical, na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, como o Laboratório de Performance com obras de Villa-Lobos e o II Festival Penalva – I Mostra da Música Paranaense. O que se pôde observar foi o envolvimento cada vez maior de intérpretes (alunos, professores e músicos em geral), em uma atmosfera agradável de aprendizagem e troca de informações e de vivências. Isso demonstra que os Laboratórios são um recurso didático-artístico-cultural relevante e que devem ser usados com freqüência, nas várias fases do aprendizado musical.
Referências
CANGUILHEM, georges (1952), La Connissance de la vie, Paris nova edição Vrin, 1965.
CHARLOT, BERNARD. Da relação com o saber; trad. Bruno Magne. – Porto alegre : Artes Médicas Sul, 2000
NEUHAUS, HEINRICH. El arte del piano. Madrid: Real Musical, 1985.
TAGLIAFERRO, MAGDALENA. Quase tudo: memórias de Magdalena Tagliaferro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
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